Amauri Meireles(*)
Instalada discretamente na Câmara dos Deputados, em Mar/15, a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o Sistema Carcerário Brasileiro, que teve “como escopo investigar as condições em que se encontra o sistema prisional em nosso país e, mais do que isso, oferecer alternativas para a sua melhora”, apresentou seu Relatório Final, mais discretamente ainda, em Ago/15.
Embora tenha esse nome, referida CPI examinou o sistema de Execução Penal que, além de carcerário e prisional, é equivocadamente chamado, também, de penitenciário e penal, em razão da miscelânea terminológica e conceitual nessa área. Misturam-se temas de Execução Penal Jurisdicional com os de Execução Penal Administrativa ou com assuntos de Criminologia, Policiologia, Sociologia e, ainda, com procedimentos operacionais, administrativos, logísticos e de informações. Isso tem dificultado o debate e o encontro de soluções.
A CPI anterior, instalada em Ago/07 e que apresentou seu relatório em Jul/08, já havia feito um belo trabalho, ao identificar quais são os óbices e quais são os fatores geradores desses óbices que obstaculizam o pleno funcionamento da Execução Penal. Ao final, referida comissão apresentou propostas de correção dessa ameaça social moderna.
Porém, constata-se que, infelizmente, nada, ou quase nada, do que ela propôs foi operacionalizado. Uma enorme perda de tempo, de dinheiro, de trabalho, de oportunidade de, efetivamente, melhorar-se o Sistema de Execução Penal. Lembrando aqui o Princípio da Economicidade, pressupôs-se que a mais recente comissão se valeria bastante daquele documento, atualizando-o e examinando algum aspecto que porventura não tenha sido considerado. Entretanto, o que se viu, no início dos trabalhos, foi uma bizantina discussão sobre a conveniência de os agentes penais, que trabalham na custódia, também realizarem procedimentos de ressocialização.
Uma grande insensatez!
Guardadas as devidas proporções, seria como determinar que o Administrador de um hospital passasse a realizar, também, operações do coração.
Nada a ver!
São atividades absolutamente distintas e extremamente técnicas, como o são a Custódia e a Ressocialização. Se o trabalho do médico e o do administrador hospitalar visam à efetividade no hospital, o do agente da Custódia e o do ressocializador objetivam a efetividade no estabelecimento penal.
Cada qual realizando um trabalho peculiar, dentro de sua área específica!
Matreiramente a discussão foi percebida, por seus promotores, como lhes sendo desfavorável, inoportuna e, sagazmente, foi “deletada”, ficando a sensação de que era “um bode colocado na sala” para permitir discussão de outro tema: a terceirização (atividades fim e meio) na Execução Penal Administrativa.
Antes de ser rechaçada veementemente pelos profissionais da área, por considerá-la ilegítima e ilegal, seus defensores tentaram promover o tema a polêmico, para que, ganhando a mídia e a cabeça de desinformados, tivesse aumentada a oportunidade de discussão e a chance de aprovação por alienados.
Em razão de o fundamento da proposta não contemplar qualquer benefício social, mas, ao contrário, estar embasado em enorme interesse econômico, ela foi rejeitada pela enésima vez.
No entanto, é extremamente importante ficar atento!
Certamente, será apresentada outras vezes!…
É oportuno (conveniente e necessário) aprovar o Requerimento da CPI anterior, corroborado pela CPI atual, no sentido de constituir subcomissão permanente com o objetivo de, além de outros, acompanhar o Sistema Penitenciário Nacional (sic). Segundo o documento, “cumpre, à Câmara dos Deputados, fazer um acompanhamento mais sistemático da situação, com o propósito de contribuir mais de perto para a recuperação do Sistema”.
Por oportuno, entende-se adequado reunir as proposições apresentadas pelas CPIs em 03 (três) grandes blocos, visando à operacionalização e o acompanhamento de eventos ligados à Execução Penal (judiciária e administrativa). Acredita-se que essa compartimentação garantirá continuidade, cuja ausência vem sendo fator impeditivo de se alcançar efetividade nas ações.
O primeiro bloco é, exatamente, o que congrega assuntos pertinentes à Subcomissão permanente, com destaque para a formulação de políticas públicas (de Estado), estrutura e organização relativamente uniformes, respeitadas as realidades culturais e as peculiaridades regionais.
O segundo diz respeito ao Conselho da Comunidade, citado no Art. 61 da LEP como um dos órgãos da Execução Penal, cuja estrutura e missão encontram-se no Art. 80. No Sistema de Execução Penal falta uma efetiva ligação entre o vetor judicial e o vetor administrativo.
Essa diacronia faz com que pequenos problemas não corrigidos transformem-se em grandes problemas, origem de acidentes e incidentes. Esse Conselho poderia ser o elo de ligação entre um e outro. Um órgão que identificasse problemas e buscasse soluções judiciais ou administrativas, antes de seu agravamento.
Pela leitura de vários documentos, com destaque para o Manual do Conselho da Comunidade, produzido pela Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Goiás, constata-se que há um trabalho gigantesco e hercúleo a ser realizado, se houver efetividade na missão do referido Conselho.
Não é novidade que, em grande parte dos estabelecimentos penais, os presos vivem em condições subumanas. A assistência (material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa) ao preso e ao egresso, de que fala o Art. 10 da LEP, é uma ficção, que pode tornar-se realidade com a intervenção do Conselho da Comunidade. E, que para isso ocorra, é fundamental que seus integrantes sejam remunerados. Entende-se que o trabalho voluntário é puro lirismo, numa área que exige grande dedicação. Não deve ser considerado como custo, mas, sim, como investimento de retorno inquestionável.
O terceiro bloco deve reunir tópicos relativos ao Sistema de Execução Penal Administrativa (estrutura, atividades e servidor público). Numa digressão, recorrendo-se ao Ciclo do Controle Social, vê-se que se assenta em duas vertentes: Inserção Social (o preparo para a convivência harmoniosa e pacífica) e Reinserção Social (o trabalho de correção de desvios sociais).
Na primeira destacam-se a Formação Social (ato ou efeito de desenvolver no indivíduo um conjunto de habilidades e sentimentos para torná-lo apto a viver em sociedade; a Inteiração Social (fixação de valores sociais a serem respeitados e as regras sociais a serem obedecidas) e a Contenção Social (controle de vulnerabilidades e controle de ameaças sociais), através trabalho das várias Polícias Administrativas (fiscalização, normas, resoluções) e da Polícia Ostensiva (prevenção e repressão).
A atuação repressiva dá início, também, ao trecho da Reinserção Social, que tem sequência com a Persecução Penal (a Investigação, realizada pela Polícia Judiciária e pela Polícia Técnico-Científica) e o Processo Penal (procedimento de caráter jurisdicional, que termina com a decisão judicial se o cidadão acusado deverá ser condenado ou absolvido).
Condenado, passa ao estágio da Execução Penal (Judicial e Administrativa), regido pela LEP, que “tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.
Portanto, o Controle Social se inicia com a formação do cidadão, seguindo-se sua proteção pelas polícias, a eventual correção de desvios, preliminarmente pelas polícias e na sequência pelo Judiciário, que devolve o apenado ou internado a um corpo de servidores públicos, para ser custodiado enquanto passa por um processo de reformação de sua cidadania.
Esse corpo de servidores trabalha embasado no Poder de Polícia e, às vezes, usando a Força que, lembrando Weber, é monopólio do Estado.
Assim, esse corpo de servidores públicos é, de fato, um corpo policial, mas não o é, ainda, de direito. Falta-lhe tão somente o reconhecimento normativo, quando alguns, equivocadamente, acreditam que será criada uma nova polícia.
Atualmente, mesmo com o tratamento indigno a que está submetida maioria dos apenados, ainda que sofrendo com a desídia estatal, com as deficiências materiais, estruturais, administrativas, de logística e de informações, nossos estabelecimentos penais ainda estão em pé, graças ao trabalho desses servidores, pois são eles que “seguram a cadeia”, mesmo sem o reconhecimento de sua autoridade administrativa penal que, entende-se, é de uma obviedade cristalina.
O reconhecimento constitucional, objeto da PEC-308, representa um grande reforço para o resgate da dignidade do preso e o reconhecimento da autoridade penal.
A CNBB lançou a Campanha da Fraternidade 2009 com o tema “Fraternidade e Segurança Pública” e o lema “A paz é fruto da justiça (Is 32, 17)”, anotou no Capítulo 13. Sistema de garantia e defesa de direitos, parágrafo 177: “Algo de que se costuma esquecer quando se fala em segurança pública são as guardas penitenciárias. Estas devem ser profissionalizadas e organizadas em carreira. Não se pode conceber que as delegacias de polícia continuem a funcionar como presídios, como ainda acontece em grande parte do País, o que desvia os policiais civis da sua função”.
De fato, salvo em ou outro Estado, falta profissionalização da atividade, profissionalismo de seus integrantes e modernização tecnológica na administração, na inteligência, nas operações e na logística. A discussão sobre a terceirização da atividade-fim da Execução Penal Administrativa (custódia e reintegração) deve ser enterrada definitivamente, por ser uma alternativa comercial extremamente perigosa e absolutamente ilegal.
A própria CPI Carcerária, anterior, em seu relatório, apresentou algumas propostas de Projeto de Lei, dentre elas: “.. Art. 3.º A Lei n.º 7.210, de 11 de julho de 1984, passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos 30-A e 205: Art. 30-A. O Estado poderá firmar parcerias, acordos e convênios com o SESC, o SESI e o SENAI para a profissionalização do preso”.
E, pragmaticamente, “Art. 205. Nos estabelecimentos penais, os serviços de guarda e vigilância de preso serão executados exclusivamente pelo Estado, sendo vedada a sua terceirização”.
Em novembro de 2013, movimentos e organizações sociais apresentaram ao Governo Federal a Agenda pelo Desencarceramento. Em seu item 8: “Vedação à privatização do sistema prisional – É intolerável, absolutamente intolerável, qualquer espécie de delegação da gestão prisional à iniciativa privada. Em primeiro lugar, porque é inconstitucional: de um lado, é indelegável a função punitiva do Estado, eis que atada ao monopólio da força estruturante da República e parte, portanto, dela. Por outro lado, punição não é atividade econômica e nem seria admissível que o fosse”.
E segue: “A mercantilização da liberdade de pessoas fulmina no limite o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR). Para além da inconstitucionalidade e da patente imoralidade expressa nas tentativas de transformar prisões em negócios, fato é que, também do ponto de vista administrativo, a privatização é uma péssima opção, salvo para iniciativa privada, ávida por auferir altos dividendos com a restrição da liberdade alheia”.
Finalizando, entra CPI, sai CPI e a Execução Penal, principalmente a Administrativa, continua a ser o aquiliano calcanhar da proteção da sociedade.
Tem havido razoável investimento na polícia ostensiva e na polícia judiciária e, em contrapartida, a contenção criminal (prevenção e repressão, que não devem ser confundidas com solução criminal) tem tido êxitos razoáveis.
Todavia, há um risco enorme de todo esse esforço se perder, em razão de graves fragilidades, no final do ciclo da defesa social, que estão retroalimentando a espiral da violência criminal: na Execução Penal.
Ao contrário do que é dito sem qualquer fundamentação, o sistema não está falido. Está, sim, preterido, abandonado, desamparado.
E o problema também não é de gestão, é de Administração!
(*) Coronel Reformado da PMMG
Ex-Comandante da RMBH